Uma leitura psicossocial do fenômeno da mediunidade de Umbanda
Wellington Zangari - Instituto de Psicologia - USP
1. Introdução
Este trabalho trata de tema que, apesar de meritórias exceções, tem sido negligenciado por parte dos colegas. Trata-se de uma aproximação psicológica, mais especificamente psicossocial, de uma experiência narrada por centenas de praticantes das assim chamadas “religiões mediúnicas”, qual seja, a incorporação por espíritos. Para compreender melhor essa experiência, dispusme a realizar uma investigação cientifica, que resultou na realização de minha tese de doutoramento (Zangari, 2003), cujos principais dados e parte do modelo de compreensão do objeto em análise apresento, resumidamente, abaixo. Como suponho que muitos dos colegas provavelmente não conhecem a Umbanda, iniciarei com uma breve, e naturalmente incompleta, apresentação desta religião. Em seguida, apresentarei dados obtidos pelas entrevistas realizadas com as médiuns seguidos de um modelo de compreensão psicossocial da mediunidade de incorporação.
2. Contribuições bibliográficas
Sobre a Umbanda A palavra Umbanda significa “arte de cura”, “magia”. A religião Umbanda é eminentemente brasileira, tendo nascido na segunda década do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Conforme relata Diana Brown, o primeiro centro de umbanda foi criado, por volta de 1920. Diz a história que um jovem de nome Zélio Moraes ficou paralítico. Diante do fracasso do tratamento médico, seu pai, adepto do kardecismo, levou-o para uma consulta na Federação Espírita Brasileira, no Rio. Lá, a entidade espiritual de um padre jesuíta disse-lhes que ele devia fundar uma nova religião. Devia ser uma religião tipicamente brasileira dedicada à veneração de espíritos de caboclos, índios e pretos velhos. Esses mesmos espíritos tinham sido excluídos das sessões do espiritismo de Allan Kardec. Logo depois, Zélio recebeu a visita do caboclo das Sete Encruzilhadas. Foi-lhe dito que fundasse uma nova religião chamada umbanda. Curado, Zélio estabeleceu o primeiro centro de umbanda: o Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade. Em 1938, depois de anos de mudanças, o centro instalou-se num grande prédio do centro do Rio, onde continua até hoje. (Paleari, 1990) Sociologicamente falando, a Umbanda é uma religião sincrética, formada por quatro experiências religiosas que se encontraram historicamente no Brasil: a tradição católica européia, a tradição dos orixás trazida pelos negros africanos, a indígena brasileira e o Espiritismo kardecista francês. O Catolicismo foi considerado desde a colonização a religião oficial do Brasil. Negros e indígenas foram proibidos de praticarem seus cultos. No entanto, continuaram a cultuar seus deuses e a realizar seus cultos. Para tanto, usaram de uma misdirection para evitar punições: cultuavam suas divindades, mas as imagens usadas eram as dos santos e santas católicos. Deste complexo sincretismo nasceu a Umbanda, num processo de branqueamento e ruptura com símbolos e características africanas, propondo-se como uma religião para todos, capaz mesmo de se mostrar como símbolo de identidade de um país mestiço que então se forjava no Brasil das primeiríssimas décadas do século XX. Alastrouse rapidamente. (Prandi, 2002). Apesar dessa expansão, os umbandistas continuam sendo minoria no Brasil, e apesar de haver garantias legais para o exercício de cultos atualmente, costumam se apresentar como católicos ou como espíritas (kardecistas). Segundo o censo de 2000, as pessoas que se declaram umbandistas é de 0,26% da população brasileira, algo em torno de 450.000 pessoas, número que já foi maior em décadas passadas e tem diminuído paulatinamente. A Umbanda não conseguiu uma organização suficiente para garantir a homogeneização de seus rituais e corpo doutrinário. Assim, um pesquisador encontrará muitas diferentes expressões de Umbanda. No entanto, os grupos dessa religião mantêm em comum a centralidade da mediunidade de incorporação, da qual este trabalho trata.
Psicologia e Mediunidade no Brasil O Brasil do começo do século XX assistiu a inúmeras interpretações da mediunidade também relacionadas à dissociação, porém descontextualizando tais experiências de seus aspectos culturais. A mediunidade foi descrita, quase invariavelmente, como sinal de psicopatologia (Aogras, 1983; Bastide, 1989; Querino, 1955; Rodrigues, 1900). Como se pode notar, as análises feitas da mediunidade apenas raramente foram realizadas por pesquisadores com formação psicológica. Parece terem sido sobretudo os antropólogos e sociólogos a oferecerem interpretações psicológicas ou psicossociais para o fenômeno. Mas outra classe, a médica, também se propôs a investigar os fenômenos mediúnicos no Brasil. A posição da comunidade médica brasileira sobre o Espiritismo parece acompanhar os acontecimentos históricos relacionados a essa religião no Brasil. A perseguição feita aos espíritas durante governo do Presidente Getúlio Vargas parece ter legitimado a posição da comunidade médica, francamente contrária ao Espiritismo. Por exemplo, durante as décadas de 1920 e 1930, a Liga de Higiene Mental considerava o Espiritismo como um problema de saúde mental (Costa, 1976). Murillo de Campos e Antônio Xavier de Oliveira (1931), médicos que integravam a liga, escreveram sobre o Espiritismo e outras religiões mediúnicas como um problema social. Durante esse período, muitos centros espíritas foram fechados (Hess, 1991, p.157). A legitimação científica da repressão ao Espiritismo com o argumento de que a mediunidade era um sintoma psicopatológico parece ter sido mantida pela posição dos primeiros psicanalistas brasileiros a se interessarem por essa religião, como Artur Ramos, anteriormente mencionado (Machado, 1996).
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, coube, novamente, aos cientistas sociais as análises mais aprofundadas das religiões mediúnicas e da mediunidade. Os estudos dessa época procuraram dar nova direção às pesquisas realizadas até então. Em Guerra de Orixá: Um Estudo de Ritual e Conflito, de Yvonne Maggie Alves Velho (2001), trabalho que marcou época e se constituiu uma espécie de divisor de águas quanto ao estudos das religiões afro-descendentes. “Por trás” da trama descrita em seu estudo, Maggie encontrou uma lógica baseada em duas estruturações da realidade. Uma baseada no que denominou de código do santo e outra baseada no que chamou de código burocrático. A primeira supunha uma ruptura entre a vida de fora e a vida no terreiro (nãoaceitação dos critérios de prestígio social para a organização do poder no terreiro; o controle mágico; a visão de mundo mais intuitiva, tendo por base a possessão; a visão da sociedade mais ampla como sociedade estratificada, sendo a hierarquia do terreiro a inversão dessa hierarquia social; e a aceitação do conflito entre as distintas posições hierárquicas: demanda1 (Velho, 2001, p.131). A segunda estaria baseada no prolongamento da vida de fora para a vida no terreiro (aceitação dos critérios de prestígio social para a organização do poder no terreiro); controle racional através de um estatuto; visão de mundo mais racional e menos intuitiva; visão estratificada da sociedade mais ampla, estabelecendo a hierarquia do terreiro como prolongamento da hierarquia social; e não-aceitação do conflito entre as distintas posições hierárquicas – não-aceitação da demanda (Velho, 2001, p. 131). Maggie descobre a lógica do conflito entre tais códigos, não se prendendo à análise da abordagem tradicional em Antropologia que se preocupava quase que exclusivamente em encontrar as relações justapostas das possíveis origens das religiões afro-brasileiras. Preocupada mais com as inter-relações entre as distintas lógicas que operavam no terreiro estudado, pôde encontrar com maior nitidez suas contradições internas, o conflito operante no grupo. Apresentei o trabalho de Maggie como um exemplo de como as religiões afro-descendentes têm sido abordadas pela Antropologia atualmente, procurando absorver o que se manifesta na interação dos membros de um grupo (do qual, de certa forma também o pesquisador faz parte), seus símbolos, rituais e costumes, e menos na busca de funções ou de sinais. Outro exemplo, ainda mais recente e de perspectiva eminentemente sociológica, é o trabalho de Lísias Nogueira Negrão, Entre a Cruz e a Encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo, no qual encontramos inigualável descrição da Umbanda, em toda sua complexidade cultural e relacional (Negrão, 1996). Negrão analisa o movimento da Umbanda em São Paulo desde a noção de campo, que lhe permite avaliar as dinâmicas interna e externa dessa religião. A dimensão interna, ou endógena, resulta no reconhecimento da complexa diversidade que a Umbanda apresenta em suas produções e manifestações culturais. Na trama que se estabelece entre a Umbanda e as demais religiões, sobretudo aquelas que lhe são mais importantes quanto ao fornecimento de produtos simbólicos – como o são o Kardecismo e o Candomblé – encontra a dimensão externa, ou exógena, fundamental para a compreensão desta religião em disputa, no campo, por espaço, legitimidade, institucionalização e identidade. No resultado dessas dinâmicas, Negrão encontra dados que parecem não sustentar a clássica concepção de que a Umbanda tenderia para o branqueamento racionalizador e moralizador sempre crescente. Conclui que, ao contrário dessa expectativa, a Umbanda estaria entre as solicitações da legitimação encontrada nas religiões cristãs (daí a imagem que o autor faz da cruz) e os interesses das origens negras e populares (a encruzilhada). As abordagens que priorizam as relações, as tramas, ou o campo, animam meu trabalho, embora minha perspectiva, que é psicossocial, seja claramente distinta da antropológica e da sociológica. A partir de um referencial clássico dentro da Psicologia Social, a teoria de papéis, pretendo oferecer uma contribuição psicológica para a compreensão do fenômeno da incorporação de médiuns de Umbanda. Tal referencial teórico guarda, creio, profunda empatia com os métodos empregados pela Antropologia e pela Sociologia atualmente na busca de compreensão do fenômeno religioso, notadamente do campo afro-descendente. Ao considerar que os papéis se estabelecem na trama de relações estabelecidas por meio da linguagem, a teoria de papéis prioriza a análise do comportamento enquanto submetido ao campo das interações sociais. Alinho-me a essa perspectiva, importante mote deste trabalho.
3. Método e Sujeitos
Foram entrevistados todos os médiuns do templo à época, 12 médiuns, entre 16 e 61 anos de idade, 11 do sexo feminino e 1 do sexo masculino, do Templo Espírita de Umbanda Xangô Agodô, um terreiro auto-definido como pertencente à religião Umbanda, situado na cidade de São Paulo. Devido ao fato de meu estudo se circunscrever a uma parcela mínima da realidade ampla chamada “mediunidade”, não tem ele o objetivo de ser generalizado, ainda que este autor estimule fortemente que o modelo apresentado ao final venha a ser confrontado com dados obtidos de outras realidades. A seguir apresento as principais informações retiradas dessas entrevistas a respeito do fenômeno de mediunidade de incorporação. Trata-se, melhor dizendo, de uma espécie de etnografia das experiências vividas e a mim relatadas. Em benefício do espaço, exclui excertos das entrevistas ao longo do texto, originalmente usados na tese como recurso para ilustrar as descrições e para dar voz às médiuns, as principais personagens deste trabalho.
4. Resultado
A Mediunidade de Incorporação no Templo Espírita de Umbanda Xandô Agodô: Conceito, Descoberta e Desenvolvimento A mediunidade é considerada pelo grupo como uma capacidade, um “dom”, que precisa ser desenvolvido para ser empregado da maneira adequada. Há uma grande variedade de modalidades de mediunidade, como a “mediunidade de vidência” (ou “clarividência”), a “mediunidade de audição” (ou “clariaudiência”), a “mediunidade intuitiva” (ou sensitividade), a “mediunidade de escrita” (ou “psicografia”), dentre outras, além da “mediunidade de incorporação”. Assim, nem todas as pessoas seriam médiuns, e dentre os médiuns, nem todos seriam médiuns de incorporação. A mediunidade de incorporação é definida como a capacidade de deixar que as entidades controlem o corpo do médium para, assim, poderem realizar seus trabalhos de caridade na Terra. Desenvolver a mediunidade significa, antes de mais nada, aprender a não interferir no processo de incorporação. Talvez a palavra mais empregada para definir tal posição do médium seja “entrega”. Entregar-se significa não resistir, não duvidar, não controlar. A entrega é, ainda, essencial, para quê, como foi dito, as médiuns não interfiram nas consultas. Ali deve falar a entidade, não a médium. Qualquer tentativa de controle por parte da médium poderia ter conseqüências nefastas para o trabalho das entidades. Mesmo que tenha passado meses ou anos de desenvolvimento, qualquer médium sabe que corre risco. É por isso que há um momento nas giras em que cada médium aproxima-se do peji, deita-se frente a ele, “bate cabeça”, e pede forças para que possa se entregar. A entrega é obtida com o desenvolvimento da mediunidade, ou seja, com a “firmeza”, que significa abandonar-se completamente ao trabalho dos espíritos. Mas entregar-se não significa estar inconsciente. De fato, há “médiuns inconscientes”, ou seja, aqueles que não têm memória do momento da incorporação. Mas, estes são a minoria dos médiuns. O restante é composto por “médiuns conscientes”. Ser uma médium consciente não significa ter algum controle durante a incorporação, mas simplesmente estar presente, vendo, ouvindo e, muitas vezes, sentindo o toque das roupas no corpo, a bebida que é ingerida pelas entidades, o gosto do charuto. Perdem a noção de espaço e de tempo. Durante as consultas, a médium consciente pode ver o consulente, ouvir suas queixas e as orientações da entidade. No entanto, ocorre que a memória desses dados é confusa. As médiuns podem saber que determinada entidade atendeu uma certa pessoa, mas dificilmente consegue se recordar com precisão do que foi dito. Muitas vezes, recordam-se das orientações das entidades, mas não se lembram a quem foram dirigidas. Tal confusão seria provocada pelas próprias entidades, de maneira a guardar o sigilo necessário para que a relação entre elas e os consulentes seja preservada e, sobretudo, para que os médiuns não se sintam tentados a controlarem, de alguma forma, as próximas consultas com o mesmo consulente. As médiuns conscientes sabem que estão incorporadas porque não têm a condição de controlar seu aparelho motor. No começo de suas vidas como médiuns, testam essa possibilidade, convencendo-se de que, de fato, não são elas que movimentam seus corpos durante a incorporação. Mas a dúvida pode, ainda assim, voltar a perturbar as médiuns, sobretudo quando a médium ainda inexperiente dá-se conta que percebe tudo à sua volta. Algumas vezes não sabia que sua mediunidade poderia ser de tipo consciente. A permanência da consciência durante a incorporação é motivo de mais dúvidas. A dúvida pela consciência durante a incorporação pode ser superada por meio de outras experiências que mostram o domínio das entidades, não apenas sobre as atividades motoras das médiuns, mas sobre o tipo específico de comportamento realizado. O comportamento das entidades nem sempre combina com o dos seus cavalos. Há médiuns que não fumam e sentem repugnância ao tabaco. Mas suas entidades fumam cigarro, cigarro de palha, charuto, cachimbo. Há médiuns que não toleram bebidas alcoólicas, apesar de suas entidades beberem grandes quantidades desse tipo de bebida. Há médiuns que se julgam introvertidas, envergonhadas e tímidas, incapazes de dançar e gritar em público como fazem suas entidades. Outras experiências são ainda mais significativas para as médiuns. As entidades possuem conhecimentos especializados aos quais as médiuns jamais foram sequer iniciadas, como por exemplo, o nome e as funções de determinadas ervas, ou de cantar músicas que alegam nunca terem aprendido. Há entidades que teriam a capacidade de conhecer fatos da vida de seus consulentes aos quais os médiuns jamais teriam tido acesso, mas que se mostram acertados. Alguns desses fatos estariam relacionados a eventos futuros, desconhecidos por quaisquer pessoas. Haveria outros eventos, não ligados ao momento da incorporação, que mostrariam aos médiuns, segundo suas interpretações, a realidade da “espiritualidade”, solidificando ainda mais a crença de que os espíritos os habitariam. Há narrativas de “experiências fora do corpo”, “experiências de paralisia do sono” acompanhadas de visões das entidades, “experiências de percepção extra-sensorial”, dentre outras “experiências anômalas”. Estas experiências representam para os médiuns uma prova direta da espiritualidade e indireta de que, de fato, suas entidades podem se manifestar na incorporação. São experiências muitas vezes compartilhadas, em que, por exemplo, uma informação adquirida de maneira “anômala” é contada a alguém que pode testemunhar sua veracidade no futuro. Isto aumenta ainda mais seu poder persuasivo. As razões que levaram os médiuns à Umbanda são variadas. Na maioria das vezes deveu-se à busca para a resolução de um problema pessoal ou familiar.
No contato com as entidades que os auxiliam, há a descoberta de que a pessoa é um médium. Geralmente as entidades sugerem que a pessoa comece a trabalhar sua mediunidade. À medida em que há o chamamento, a mediunidade poderá ser desenvolvida caso o assistente tome a decisão de fazê-lo. Em caso afirmativo, é encaminhado às giras de desenvolvimento, cujas funções já foram apresentadas acima. A entidade prepara seu futuro médium, passando-lhe uma receita. Uma vela, geralmente branca, para o anjo de guarda do médium e um copo com água. O médium, então faz suas orações, solicitando o que deseja. Este é o primeiro contato do médium com o ritual. Posteriormente, a entidade receitará “banhos de defesa”, com ervas aromáticas ou mesmo com sal grosso, com a finalidade de “iluminar a aura espiritual” do médium e limpar o corpo de tudo quanto ali reside de negativo, fornecendo-lhe equilíbrio espiritual. Paulatinamente o neófito ingressa no universo ritualístico e de desenvolvimento de sua mediunidade. Esse processo de preparação da mediunidade pode ocorrer também fora das giras. As entidades podem, ainda, iniciar o desenvolvimento das médiuns por meio de sonhos. Apesar da satisfação que a religião e a mediunidade lhes dá, não é raro que se afastem de suas obrigações temporariamente, retornando posteriormente. As razões do afastamento devem-se geralmente a problemas familiares, como a presença em casa de um doente, que exige cuidados especiais constantes, ou mesmo pessoais, como uma gravidez que obriga a médium ao repouso absoluto. Mas há relatos de médiuns que se ausentaram temporariamente das giras por razões menos drásticas, como o desinteresse momentâneo ou a possibilidade de se ver livre das restrições impostas pela vida religiosa. No entanto, durante o tempo de ausência, sentiram que suas vidas se esvaziaram e que problemas anteriormente resolvidos voltavam a acometê-los. Sentem que, a partir do momento em que foram escolhidas pelas entidades não têm como abandonar a vida mediúnica sem uma represália das entidades, uma “cobrança”. O retorno às atividades mediúnicas lhes devolveu o “equilíbrio” perdido. As médiuns são estimuladas pelos dirigentes da casa a se instruírem na tradição. As giras de desenvolvimento servem não apenas para preparar os médiuns iniciantes na incorporação, mas também como circunstância de aprendizado continuado dos “fundamentos da Umbanda”. Nelas conhecem os segredos dos Orixás e das entidades, suas histórias, lendas, cores características, cantigas, indumentária, poderes. Outra situação em que os ensinamentos são transmitidos é a camarinha, já apresentada acima. O Templo Espírita de Umbanda Xangô Agodô mantém, ainda, a “Biblioteca Espírita”, com variados títulos de livros, alguns propriamente de ensinamentos de Umbanda (geralmente romances de escritores umbandistas), outros de tradição kardecista. Mas, lembrando o que foi mencionado acima, os médiuns avaliam o período em que “camboneavam” como um dos mais ricos em termos de aprendizado da doutrina. Os ensinamentos vêm também do contato indireto das médiuns com suas entidades, mediado pelos cambonos. Antes e depois do atendimento à
assistência, cambonas e entidades trocam informações. Este é o momento em que os espíritos narram suas histórias de vida, dando detalhes de suas existências passadas, e enviam “recados” para seus “cavalos”. Tratam-se de orientações as mais variadas, tanto relacionadas aos problemas práticos da vida cotidiana quanto da sua vida espiritual. Sustenta-se que a mediunidade será tanto melhor quanto mais evoluído for o médium. Assim, todas essas formas de tornar o médium conhecedor dos ensinamentos da doutrina, dos fundamentos da Umbanda terão resultados práticos para a incorporação. A orientação dada pelos dirigentes da casa, é de que, com o desenvolvimento moral dos médiuns, a incorporação cada vez mais se assemelha a um estado quase indissociável do estado de não-incorporação. Na prática, a passagem de um estado para outro torna-se cada vez mais suave, sem a necessidade de tremores, arrepios, dormência dos membros e pulos. De fato, muitas das narrativas das médiuns dão conta que, durante o período de desenvolvimento, estes eram os sinais coadjuvantes mais freqüentes da falta de “firmeza” na incorporação. Em outros termos, lembrando do que foi dito no início desta seção, a qualidade da entrega depende diretamente da dotação de conhecimento, de aprofundamento constante nas tradições. Mas não apenas os médiuns devem ser desenvolvidos. Também as entidades o devem ser. Se por um lado os espíritos são reconhecidamente doutrinadores, por outro é sabido que as entidades, a exemplo de qualquer ser humano, também são passíveis de evolução. Assim, devem ser “doutrinadas”, disciplinadas. Acima mencionei o fato de que há espíritos considerados sofredores ou aflitos que não devem ter acesso às giras, cabendo-lhes reconhecer que devem se encaminhar para a “luz”, um estágio mais evoluído na escala moral. Mas a doutrinação se dá de forma também muito prática. As entidades simplesmente não podem apresentar comportamentos não aceitos na casa. Se o fizerem, serão duramente repreendidas. Por exemplo, não é permitido que os guias tirem as roupas ou escarrem no congá. As entidades vão, por assim dizer, também elas, sendo doutrinadas no sentido de se comportarem cada vez mais adequadamente. Há médiuns que, por uma razão de saúde, por exemplo, devem deixar de trabalhar com a incorporação e, portanto, suas entidades. Estas podem, então, passar a trabalhar com outras médiuns. Para tanto, há uma preparação especialmente elaborada para tal e um ritual para essa finalidade é realizado, de acordo com as orientações do próprio espírito. A médium que deixará de trabalhar com a incorporação recebe, pela última vez, a entidade com que trabalhou, muitas vezes por décadas. Durante o ritual, a entidade irá deixar um corpo para, imediatamente, ocupar outro. Mas este é um caso relativamente raro. O mais comum é que uma entidade nova venha a se apresentar na incorporação. Durante as giras de desenvolvimento, como já mencionado, o médium sente uma ampla variedade de “sintomas” fisiológicos da presença, da proximidade de sua entidade, até mesmo antes de saber de quem se trata. Estas novas entidades
podem contatar as médiuns, por exemplo, em sonhos ou em visões, informando de quem se tratam, suas histórias ou o que desejam. O processo de desenvolvimento da mediunidade é, na maioria das vezes, lento e sofrido, até que, finalmente, a entidade chega, dá seu nome e risca o seu ponto. Cada médium pode ter uma entidade de cada uma das linhas (cada linha é uma espécie de família de entidades), sendo que o fato de que existam médiuns que incorporem mais de uma entidade por linha não é bem visto, dando a impressão de que se trataria de “mistificação”, ou seja, de uma incorporação fraudulenta. Mas há uma tênue separação entre a mistificação, a incorporação e a ação do “psicológico” na incorporação. A primeira seria algo deliberado, consciente, com vistas a mostrar poder, ser reconhecido como médium desenvolvido. Segundo o dirigente do templo, os médiuns, sobretudo os novatos, tendem a produzir “romances”, acreditando incorporar lindas índias de olhos cor de mel ou fortes guerreiros, de grande estatura. Assim, o nome das entidades teria pouca variação, sendo todas “Juremas”, por exemplo. Isso seria uma influência, não deliberada, não necessariamente voluntária, por parte do médium, que no afã de conhecer as características de sua entidade, seriam levados a acreditar ser o que pensam delas. Não se trata de uma mistificação, esta sim repreensível, mas o resultado de mediunidade ainda pouco desenvolvida, em que os conteúdos mentais dos médiuns interfeririam na incorporação. Isto pode ser demonstrado pelo fato de que, com a aquisição de maior “firmeza”, entrega e desenvolvimento espiritual dos médiuns, as entidades têm a possibilidade de se identificarem com maior precisão, sem que o “psicológico” dos médiuns influencie o conteúdo de sua fala. Tal influência, portanto, é vista como um mecanismo até certo ponto esperado e, portanto, não reprovável. Mas, se por um lado é um processo esperado dentre os novatos, também é certo que deverá desaparecer. A ambivalência entre o que seria próprio do médium e o que seria próprio da entidade é manifesta a partir da apresentação do que seria mediunidade de acordo com a doutrina da Umbanda. Esta reza que a incorporação seria a assimilação de uma “energia” chamada entidade, que atua sobre a “matéria física” do médium, em conjunto com a “energia” deste. Isto significa que o “espírito” do médium sempre está presente quando da incorporação, como já apresentado acima. O postulado básico aqui é que a pessoa humana é composta, ao mesmo tempo, pela sua “energia vital” e pelo seu corpo físico. O resultado do encontro da energia da entidade com energia do médium resulta na “transcendência da matéria”, transformando o ser humano em ser divino, capacitando-o a manipular as “energias” e orientar os consulentes de maneira adequada. A conclusão a que as médiuns mais experientes chegam é a de que, de fato, a consciência durante a incorporação é variável, com a ocorrência de curtos períodos de total inconsciência. Como foi mencionado, não apenas a prática e o desenvolvimento do médium alteram a forma de incorporação e sua qualidade,
mas também o aumento do conhecimento que é transmitido a cada nova geração de adeptos. Por meio de conversas informais com as médiuns, soube que acreditam que no início do movimento da Umbanda os médiuns eram praticamente inconscientes em suas incorporações. Os métodos de desenvolvimento da mediunidade de incorporação empregados à época, e até há poucos anos utilizados, visavam retirar a consciência dos médiuns de alguma maneira para facilitar a incorporação, como por exemplo, a técnica de fazê-los girar sobre seu eixo corporal até que perdessem os sentidos. Estimula-se, atualmente, o desenvolvimento da “concentração” dos médiuns, técnica mais suave e de resultados geralmente paulatinos, em que se procura “esvaziar a mente”. Livrando-se de seus pensamentos, o médium se entrega à entidade. Cada entidade tem uma forma pessoal, única, de emanar sua “energia” para o médium, que poderá ter sensações físicas, como o arrepio, o tremor, a tontura e a taquicardia, de acordo com o tipo de entidade. Do torpor causado pela “puxada” energética das entidades, o médium passa a verificar que seu aparelho motor parece operar independentemente de suas intenções. Se se tratar de um caboclo, por exemplo, poder-se-á ver o médium bater a mão contra o peito, depois soltar o brado de guerra dos índios e assim por diante, até que a entidade seja “recebida” totalmente. Como auxiliar no processo de concentração, os médiuns contam com a importante colaboração das cantigas e de uma técnica de imaginação. Cânticos que têm a finalidade exclusiva de preparar os médiuns para a chegada de um determinado tipo de entidade, facilitam a “captação” das “vibrações”, das “energias” que são as entidades. A técnica de imaginação é, na verdade, uma atitude mental que tem como objetivo chamar a entidade. Na prática, procura-se visualizar mentalmente qualquer coisa que remeta à entidade. O processo de preparação para a incorporação não se resume, no entanto, à concentração durante a gira. Ele deve se iniciar bem antes, com uma série de rituais e interdições. Desde o dia anterior à gira, os médiuns não devem manter relações sexuais. Na manhã do dia da gira, ao acordarem, saúdam os Orixás e suas entidades, e iniciam o processo de entrega a elas, dispondo-se, mentalmente, à tarefa que será levada a cabo mais adiante. Tomam seus banhos aromáticos com ervas especificadas pelas suas entidades e acendem velas. Toda essa preparação leva a uma “boa incorporação”, mas não a garante. Qualquer problema mais sério, como discussões com familiares, pode dificultar, ou mesmo impedir a incorporação.
5. Discussão
A mediunidade de incorporação é um fenômeno cujo estudo exige um trato interdisciplinar. Seriam necessárias ferramentas conceituais de diferentes origens para uma compreensão abrangente de sua natureza e complexidade. Não me proponho a tão abrangente empresa. No entanto, ancorado pelo reconhecimento de que apenas a avaliação interdisciplinar do fenômeno em questão seria suficiente para sua compreensão, ofereço uma contribuição, a partir de uma abordagem psicológica, com a esperança de que venha a ser considerada e somada àquelas já consagradas no estudo das religiões mediúnicas, sobretudo na área das Ciências Sociais. Reconheço, portanto, que a perspectiva aqui adotada não esgota, nem pretende esgotar, a compreensão do fenômeno, embora seja necessária para contribuir para que tal realidade seja conhecida em toda a sua riqueza.
A Construção Individual e Grupal da Mediunidade de Incorporação A mediunidade de incorporação é o resultado de uma construção social e individual em que estão em jogo os conceitos ou crenças grupais relacionados à mediunidade e à doutrina da Umbanda de uma forma geral, e a aspectos individuais das médiuns, tanto cognitivos quanto afetivos. A mediunidade de incorporação é construída por meio de um processo constituído de seis elementos, a saber, assimilação, entrega, treino, criação, manifestação e comprovação. As médiuns se desenvolvem como tal, geralmente a partir da recomendação de uma entidade a quem costumam recorrer e consultar. Iniciam, assim, um período, por vezes longo, de aprendizagem, de desenvolvimento, pode-se dizer, de construção de suas mediunidades. Esse processo geral é composto de seis processos específicos, que atuam concomitante e interdependentemente: assimilação, entrega, treino, criação, manifestação e comprovação. A assimilação é o processo pelo qual o indivíduo, por meio do contato com os conceitos do grupo a respeito da vida espiritual, se informa da doutrina da Umbanda, dos deveres das médiuns, das qualidades das entidades e de tudo quanto signifique a cultura religiosa tal qual adotada pelo grupo, passam a integrar a sua vida anímica. Este é o processo psicossocial e individual de constituição de uma imagem interna ou representação das crenças do grupo. As crenças grupais, as crenças compartilhadas, tornam-se, assim, constitutivas da subjetividade dos que delas se nutrem. Por meio da assimilação, as médiuns e futuras médiuns poderão construir um quadro de referência umbandista e, neste caso, da mediunidade de incorporação. O processo de assimilação parece ser apenas parcialmente consciente. Estão em jogo conteúdos não apenas nãoverbais subliminares, que permeiam qualquer interação humana mas, sobretudo, um tipo de processamento de informações não-consciente, como ficará claro ao ser apresentado o quarto elemento do processo de construção da médium, a criação. O processo de assimilação corresponderia ao que Sundén (1977) caracterizou como disposição neurológica e conseqüente formação de padrões perceptivos, necessários para a constituição de um quadro de referência perceptivo. Sundén preocupou-se em reconhecer o processo neurológico de formação dos padrões perceptivos. Tais padrões seriam o resultado da exposição gradual do sistema nervoso a estímulos que, a serem congruentes, podem servir como a base para a formação de padrões perceptivos e, posteriormente, para o reconhecimento de padrões na realidade, uma vez que os padrões estruturam a percepção. Assim, a partir da formação do quadro de referência umbandista, o indivíduo tende a perceber a realidade como permeada de espíritos e de suas manifestações. Sem exceção, as médiuns afirmam que o processo de desenvolvimento da mediunidade, conforme já apresentado, só se realiza se não interferirem, ou seja, se permitirem que suas entidades tomem conta de seus corpos. Chamei esta disposição cognitiva de entrega. O processo de entrega supõe completa ausência de controle, esforço consciente para não agir sobre o próprio corpo de modo que uma entidade possa atuar sobre ele conforme sua própria vontade. Ora, ninguém se entrega a tal ponto sem que esteja inteiramente decidido a tal e sem que tenha completo conhecimento e aceitação da razões, das intenções e dos objetivos que motivam tal domínio de seu corpo por parte de um suposto outro. Assim, sem que haja assimilação das crenças do grupo, não haverá incorporação de espíritos, ou seja, sem que já exista um quadro de referência umbandista suficientemente formado. Esse processo mostra nitidamente a interface existente entre os processos grupais e individuais, uma vez que estão em jogo informações fornecidas pelo grupo e a disposição individual em colocarse a serviço do grupo. As médiuns relatam que, com o passar do tempo, têm mais facilidade para a entrega. Postulo que tal facilitação se deva, basicamente, a dois fatores: aumento gradativo de assimilação, que torna a entrega mais facilmente realizável, e o treino, próximo elemento a ser apresentado. Refiro-me a treino como um processo gradual de aprendizagem psiconeurológica, portanto pode-se falar de treino de alteração de consciência, ou dissociação disciplinada. Há numerosas variáveis que interferem nas múltiplas modalidades de dissociação, como fatores neuropatogênicos, fatores psicológicos e fatores culturais. Assim, uma manifestação dissociativa deve ser compreendida à luz de uma avaliação do contexto em que se dá (Krippner, 1997; Martinez-Taboas, 1995). Minha aposta interpretativa é de que a mediunidade de incorporação seja uma alteração de consciência disciplinada culturalmente, cuja aparição e conteúdo dependerá, portanto, de fatores tanto sociais quanto individuais. O grupo fornecerá as informações simbólicas, ou seja, uma semântica específica. O indivíduo que adere ao grupo, recebe, elabora, assimila e transmite tais informações. Mais do que isso, as vivencia. O contato com as médiuns revelou que para elas as idéias não são simplesmente entes abstratos, acessíveis apenas por meio do esforço da razão e da lógica. As idéias, que poderiam aqui adequadamente ser chamadas de crenças grupais (Bar-Tal, 1990), tornam-se, de fato, o próprio sujeito, o que, novamente nos remete aos conceitos de assimilação e acomodação, sobretudo este último. Assim como um pedaço de pão que como transforma-se em meu corpo, as idéias são assimiladas e tornam-se parte de minha mente. Atuam como verdades. Se estou certo nesta aposta, então pode-se concluir que, uma vez que a entrega se realize, o organismo (compreendido aqui como o conjunto corpo-mente) se acomodará conforme o esperado. No caso da mediunidade, uma vez vencida a resistência inicial, a estranheza de ter seu corpo ocupado por um outro ser, a médium exercitará seu sistema nervoso de modo a que funcione de acordo com as crenças do grupo, agora também crenças da médium, uma vez que ela também é parte do grupo. O treinamento conta com aliados importantíssimos, como as cantigas específicas de cada linha, que falam da realidade das entidades daquela falange, o som dos atabaques marcando a forte cadência indutora de alterações de consciência, das danças, do bater de palmas, dos paramentos, das luzes, dos odores do incenso... Todos estes elementos, somados, parecem facilitar o processo cognitivo de formação do setting de recepção das entidades (Lans, 1978; 1987). Servem, ainda, como estímulo padronizado condutor da alteração de consciência, com função semelhante a do assim chamado “signo-sinal” na hipnose (Faria, 1958). Assim, sempre que tal estímulo for apresentado deverá significar que a médium deverá incorporar. Sem tais coadjuvantes, os médiuns contariam exclusivamente com os estímulos cognitivos internos, diminuindo a chance ou sucesso da incorporação. O processo de treino dissociativo é lento e leva, em média, quatro meses, segundo minha amostra. O treino dissociativo corresponde ao período de desenvolvimento da mediunidade durante o qual, como foi dito, as médiuns também recebem informações a respeito da semântica umbandista. O momento do desenvolvimento é aquele em que a médium deve procurar “ausentar-se”, não controlar-se, desligar-se. Lentamente passa de alguns arrepios, de formigamento nas extremidades do corpo, da possível vaso-constrição (dada a sensação de rebaixamento da temperatura corporal), para períodos cada vez maiores de ausência, de “cabeça oca”, como uma das médiuns afirmou. Esse período corresponde a uma acomodação lenta do sistema nervoso, de treino neurofisiológico, de um progressivo aumento disciplinado da dissociação. Parece-me inevitável lembrar dos conceitos de assimilação e acomodação de Jean Piaget, cuja lembrança me veio à consciência quando de uma das revisões do texto acima, muito provavelmente dada a semelhança entre os conceitos piagetianos e os processos que reconheci na vida mediúnica. Para Piaget (1952), assimilação é o processo pelo qual o organismo entra em contato com o meio ambiente, estando disponível aos estímulos provenientes deste, enquanto que acomodação é processo de modificação do organismo em função do contato com o meio. O conceito piagetiano de assimilação identifica-se com o processo de mesmo nome acima descrito. Utilizo aqui o termo treino para nomear o processo que guarda muita similaridade com o processo que Piaget chamou de acomodação. Mas o que temos na mediunidade não é vazio. As médiuns não simplesmente se ausentam. A ausência dissociativa é apenas um dos elementos da mediunidade de incorporação. O que as médiuns apresentam enquanto incorporadas sugere um processo de construção não-consciente das entidades, de uma também progressiva elaboração de suas características. A este processo dei o nome de criação. Um médium em desenvolvimento não apresenta imediatamente sua entidade. O período de incubação criativa permite que a entidade seja concebida em todas as suas características, do nome ao ponto riscado, da roupa de sua preferência à história de sua vida, da forma de caminhar e dançar à maneira de tratar os consulentes. Há, portanto, um espaço de criação possível, exercitado pelas médiuns, que não despreza os limites estabelecidos pelos conteúdos próprios da doutrina. Ao contrário, estes são assimilados como já visto e profundamente levados em conta no processo de criação das entidades, mesmo porque estas também devem respeitar a semântica do grupo. Como já mencionado, há casos em que as entidades devem ser “doutrinadas”, ou seja, devem ter seus comportamentos lapidados de acordo com as regras estabelecidas pelo grupo. Assim, apesar de ser predominantemente um processo não-consciente, a criação supõe uma negociação com as exigências do grupo. Haveria, portanto, um constante feedback entre a criação própria da médium e seu meio social. Se, por um lado, as entidades podem ser respeitadas como “espíritos de luz”, que auxiliarão os dirigentes do terreiro na elaboração e transmissão dos conteúdos doutrinários e rituais, por outro lado é certo que nem todas as entidades são dignas de respeito imediato e deverão passar por um intenso “desenvolvimento moral” para que cheguem à luz. Como já mencionado, sempre há o risco, inclusive, de que uma dessas entidades “baixo astral”, os Eguns, venha a invadir as giras, tumultuando os trabalhos dos “espíritos iluminados”. Se há uma demanda cultural para que tais invasões ocorram, como sustentam alguns estudiosos (Ortiz, 1991), também é certo que tais processos se dão com maior freqüência entre as médiuns ainda em desenvolvimento ou em pessoas da assistência, ou seja, em indivíduos cujos elementos ora apresentados (assimilação, entrega, treino, criação, manifestação e comprovação) parecem não ter sido suficientemente “desenvolvidos” e integrados. O processo da manifestação, que já foi apresentado sem ser distinguido de maneira explícita na seção anterior, é o resultado do processo de criação. Em outras palavras, a manifestação é o processo através do qual a entidade e todas as suas características finalmente se apresentam na gira. A manifestação é um complexo conjunto de elementos comportamentais - como a expressão facial, o estilo de movimentação no espaço, a maneira de expressão verbal, a forma de dançar – que deve se integrar profundamente com outro aspecto fundamental, a história da entidade, que abrange não apenas suas experiências passadas, mas, sobretudo, sua personalidade e conhecimentos atuais – seu gosto por uma determinada bebida alcoólica, a preferência por prescrever banhos aromáticos aos banhos de sal e mesmo a atitude de fuga frente a estímulos que foram aversivos ao longo de sua história. Enfim, a mediunidade de incorporação não remete apenas a uma ausência mais ou menos permanente do ego da médium, mas à manifestação de uma outra identidade completa, ou em vias de se tornar completa. Todas as médiuns entrevistadas manifestaram ter ou ter tido dúvidas a respeito de sua mediunidade de incorporação. As dúvidas referem-se à impossibilidade de se reconhecer com exatidão se as entidades são absolutamente autônomas ou se são um produto delas próprias. No entanto, sem exceção, acabam por sentirem-se racionalmente incapazes de duvidar graças às comprovações que acabam por experimentar. Elas podem ser descritas como uma série de experiências anômalas vividas pelas médiuns, ou seja, experiências para as quais não encontram qualquer explicação lógica que as convença de que elas próprias seriam as responsáveis pelas entidades. A partir da análise dos relatos, é possível distinguir claramente dois grupos distintos de experiências anômalas: as ocorridas em virtude da incorporação e as vivenciadas independentemente dela. Saltam aos olhos das médiuns as diferenças entre elas e suas entidades. Há médiuns que são abstêmias por intolerância ao álcool, mas suas entidades ingerem, por vezes, grandes quantidades de bebidas com forte teor alcoólico, sem que isso lhes faça se sentir alcoolizadas ao desincorporarem. Há médiuns que não fumam e não toleram sequer o odor do cigarro, mas suas entidades fumam cigarros, charutos e cigarros de palha. Há médiuns que relatam jamais se permitirem dançar em público, por se considerarem tímidas e introvertidas; apesar disso, suas entidades dançam, saltam e bradam fortemente. Um segundo aspecto a respeito desse tipo de comprovação, que depende da incorporação, é o reconhecimento por parte das médiuns de que suas entidades possuem habilidades para as quais jamais foram treinadas. Esse é o caso de uma médium que afirmou que seu Caboclo prescreve ervas das quais nem mesmo se lembra de ter ouvido o nome e cujas funções terapêuticas desconhece por absoluto. Outras médiuns relatam que jamais poderiam sequer imitar as danças de algumas de suas entidades. Mais impressionantes às médiuns é a capacidade de algumas entidades revelarem segredos ou fatos passados (e mesmo futuros) dos seus consulentes. O segundo tipo de comprovações são as indiretas, independentes da incorporação. Mostram às médiuns a existência do mundo espiritual, uma vez que vivenciam situações que não podem explicar de outra maneira que não a religiosa. Este é o caso das “experiências fora do corpo”, “experiências extrasensoriais”, “experiências oníricas anômalas”, dentre outras, já descritas anteriormente. Mesmo tais experiências, apesar de seu caráter subjetivo, são interpretadas em consonância com o quadro de referência do grupo. O conjunto dos seis elementos discutidos - assimilação, entrega, treino, criação, manifestação e comprovação – é representativo do profundo interrelacionamento entre a dimensão grupal e a individual, demonstrando como a mediunidade de incorporação deve ser compreendida tanto como uma construção do grupo quanto como uma construção individual de cada uma das
médiuns. Qualquer discussão, seja em relação à anterioridade de uma ou de outra ou da relevância de uma sobre a outra para a compreensão do fenômeno da mediunidade de incorporação não me parece ser procedente.
6. Considerações Finais
Uma das características mais marcantes do fenômeno da mediunidade de incorporação é seu caráter midiático, ou seja, seu potencial para ser o elo que se estabelece entre os distintos atores da cena grupal. Vejo a mediunidade de incorporação como um instrumento construído e utilizado no grupo e pelo grupo. Vimos como as médiuns do Templo Espírita de Umbanda Xangô Agodô descobrem o que é mediunidade no contato com as outras médiuns incorporadas. Vimos, ainda, que descobrem que são médiuns no contato com as entidades incorporadas por suas “irmãs”. A partir de então, passam por um longo processo de treinamento no grupo para, então, devolverem ao grupo seu “dom”, permitindo ao grupo o contato com novas entidades, o que significa maior oportunidade de obtenção dos benefícios espirituais. A análise realizada revela que, de fato, as médiuns são instrumentos grupais para o auxílio mútuo. O terreiro pode, nesse sentido, ser compreendido como uma cooperativa religiosa cujo produto é um bem simbólico e mágico que tem como função, por um lado, de estruturar a cosmovisão dos seus participantes, dando-lhes sentido de vida e, por outro lado, a resolução imediata de problemas para os quais não encontram solução no mundo secular. A análise dos dados, assim, parece ter revelado a correção das proposições ou hipóteses apresentadas, mostrando que não apenas foram úteis como ferramentas conceituais que nortearam o caminho investigativo, como também foram importantes para a compreensão do que encontramos ao longo desse caminho. Posso dizer, dessa forma, que foram importantes tanto para a aplicação do método científico quanto para a interpretação teórica do objeto que propus estudar. Para terminar com uma analogia, os “pontos de partida”, serviram, ao mesmo tempo, como de bússola e como lentes. Evidentemente, sempre existe o risco de que meu próprio “quadro de referência”, formado por minhas experiências pessoais, minhas hipóteses, a proposta teórica de Sundén, as orientações que recebi ao longo dessa trajetória investigativas..., tenham me feito enxergar a realidade tal qual a apresentei acima. No entanto, ao invés de considerar a empresa científica como risco, prefiro pensála como uma tentativa humana de conhecer a realidade. Nessa tentativa sempre estarão envolvidos fatores tanto sociais quanto individuais. Mas não é exatamente essa uma das principais apostas que fiz a respeito dos médiuns de incorporação? Assim, de certa maneira, cientistas e médiuns desempenhamos nossos papéis, apostamos, arriscamos.
7. Referências Bibliográficas
• Augras, M. (1983). O Duplo e a Metamorfose. Petrópolis: Vozes.
• Bar-tal, D. (1990). Group Beliefs. A conception for analyzing group structures, processes, and behavior. New York: Springer.
• Bastide, R. (1989). As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira. (3ª edição / Edição original de 1960)
• Costa, J. F. (1976). História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Documentário. Cruz Monclova, Lidio.
• Ellemberger, H.F. (1976). El Descubrimiento del Inconsciente. Madrid: Gredos.
• Faria, O. A. (1958) Manual de Hipnose Médica e Odontológica: Histórico, Neurofisiologia e Aplicações. Rio de Janeiro: Livraria Atheneus.
• Herskovits, M.J. (1967). Les bases de l’anthropologie culturelle. Paris: Payot.
• Hess, D. (1991). Spiritists and Scientists. Ideology, Spiritism, and Brazilian Culture. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press.
• Krippner, S. (1987). Cross-cultural approaches to multiple personality disorder: Practices in Brazilian spiritism. Ethos, 15, 273-295.
• Lans, J. M. (1978). Religieuze Ervaring en Meditatie [Experiência religiosa e meditação]. Tese de doutorado não publicada, University of Nijmegen, Nijmegen, Holanda.
• Lans, J. M. (1987). The Value of Sundén’s Role Theory Demonstrated and Tested with Respect to Religious Experiences in Meditation. Journal for Scientific Study of Religion, 26, 401-412.
• Machado, F. R. (1996). A Causa dos Espíritos: um estudo sobre a utilização da Parapsicologia para a defesa da fé católica e espírita no Brasil. Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, PUCSP.
• Martínez-Taboas, A. (1995). Multiple personality: An Hispanic perspective. San Juan, Puerto Rico: Puente.
• Negrão, L. N. (1996). Entre a Cruz e a Encruzilhada: formação do campo umbandístico em São Paulo. São Paulo: Edusp.
• Nina Rodrigues, R. (1900). L’animisme fétichiste des nègres de Bahia. Salvador: Reis.
• Oliveira, A. X. de. (1931). Espiritismo e Loucura. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco.
• Ortiz, R. (1991). A Morte Banca do Feiticeiro Negro: Umbanda e Sociedade Brasileira. São Paulo, Brasiliense.
• Prandi, R. (2002). O futuro será sincrético? Candomblé e umbanda na cena religiosa brasileira. In: Simpósio ‘País passa por mutação religiosa’. Anais da 54ª Reunião Anual da SBPC. Goiânia: SBPC.
• Paleari, Giorgio. (1990). Religiões do Povo. São Paulo: Ave Maria.
• Piaget, J. (1952) The Origins of Intelligence in Children. New York: International University Press. (Publicado originalmente em 1936)
• Querino, M. (1955). A Raça Africana. Salvador: Livraria Progresso.
• Ribeiro, R. (1978). Cultos Afro-brasileiros do Recife. Recife: I.J.N.P.S.
• Sundén, H. (1977). Religionspsykologi. Problem och metoder. Stockholm: Propius förlag.
• Velho, Yvonne Maggie Alves. (2001) Guerra de Orixá- Um estudo de ritual e conflito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
• Zangari, W. (2003). Incorporando papéis: Uma leitura psicossocial do fenômeno da mediunidade de incorporação em médiuns de Umbanda / Tese (doutorado) - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia Social e do Trabalho.
